Tela de Pano-Terra: Nova Onda Cabo Verde (Ekran D’pánu Téra: Nobu Vaga Kauberdi)

Por Pedro José-Marcellino, curador do programa especial, a convite do NICHO 54

[Nota: respeitamos nesta apresentação curatorial a grafia do português europeu e incorporamos a escrita bilíngue contemplando português e crioulo, já que ambas línguas são familiares ao curador]

Cabo Verde é o país convidado do NICHO Novembro desse ano. Um luxo! Nós, um paízinho de pouco mais de meio milhão de almas, e talvez outro milhão espalhadas pelo mundo, em destaque na cidade de São Paulo, onde nossa população cabe… uma quarenta vezes.

Virámos país em 1975. Para a maioria, algo bem distante. Mas a opressão colonial, a pobreza, a seca, a emigração, o isolamento e o esquecimento deixam marcas indeléveis.

Nos nossos dez pontinhos de terra marrom em meio do Atlântico, o isolamento e o sentimento de abandono e de separação do mundo foi sempre assim, arreigado. É o paradoxo de ser um país na encruzilhada marítima de quatro continentes, mas ainda assim distante de todos eles.

Digo terra marrom, porque Deus tem algum sentido de humor. Em kriolu, “cabo” significa sítio e “verde” significa verde. Então: nosso sítio verde na verdade é bem marrom, e essa aridez é cêntrica em toda a produção artística do arquipélago. Essa ironia histórica ficou bem presente na leveza e no atrevimento do kriolu, nossa língua de matriz portuguesa e filosofia africana. Por exemplo: é com orgulho e alguma bazofaria que apresento 18 horas de curadoria de cinema cabo-verdiano no NICHO Novembro 2022. Vejam: Bazofaria é aquela fanfarronice tão fanfarrona que é quase cómica. Do tipo: argentino (ou cabo-verdiano) falando que é o melhor do mundo. Porque a gente também tem disso, como todos os ilhéus. Nossa terra é a mais sab (bacana).

Nessa programação espalhada por dois pólos — o Centro Cultural São Paulo (CCSP) e o Goethe-Institut — estará em plena exibição um recorte curatorial abraçando a(s) nuance(s) da(s) identidade(s) e da memória coletiva, da (des)pertença, do hibridismo, da transiência e da transnacionalidade da caboverdianidade. No fundo, todo o sincretismo histórico e o codeswitching contemporâneo que é nossa cultura.

Transversalmente, encontramos nesse espólio cinemático uma crítica sócio-política e uma complexa dialéctica entre o afrohistoricismo e o afrofuturismo, uma busca infindável que tem sido uma permanência no imaginário cabo-verdiano desde o início de um movimento modernista enraizado num passado traumático (ainda por problematizar devidamente).

Aliás, daí o título da curadoria: Tela de Pano-Terra se refere ao pánu téra, ou pano da terra, em português arcaico: o pano é uma arte do tear, outrora moeda de compra de escravos, que hoje é reclamado como uma peça identitária, iconográfica, e símbolo da caboverdianidade em toda sua nuance racial e cultural. Angela Brito tem recuperado essa herança nas passarelas.

Com esta programação pretendemos complexificar e problematizar noções da negritude deste lado do Atlântico com nossa realidade e nuance. E dentro dela, nos problematizando também.

Sem impor limites na duração, formato, ou género das obras programadas, esta selecção se centra em filmes recentes de cineastas nascidos pós-1975 — uma nova onda cinemática muito focada no cinema documental, no cinema-memória, e no cinema experimental.

Abrimos na segunda feira (7/11) com duas médias-metragens documentais divertidíssimas, em exibição no Goethe-Institut. No segundo dia (8/11), no CCSP, recomendo um fenomenal bloco de curtas retratando vidas crioulas em momentos de questionamento, de tensão entre o cá e o lá, num recorte de über-localismo que é simultaneamente transnacional e universalista… filmes de Denise Fernandes, Yuri Ceuninck e Falcão Nhaga, grandes promessas do cinema mainstream de marco cabo-verdiano. No terceiro dia (9/11) vários documentários de preservação da memória via testemunhos orais, e de resgate da identidade, eixos centrais de nossa criação artística. No último bloco no CCSP (10/11), não poderei deixar de salientar duas curtas documentário-híbrido afrofuturistas de Angela Brito, designer brasileira-caboverdiana, e de dois filmes experimentais: uma reprise de Kmêdeus de Nuno Miranda, e #4 Mangifera de Flávia Gusmão, que habitam a fronteira entre o ficcional, o documental e o performático. Essa sessão problematiza intensamente a equação identitária que propusemos nesse programa.

Já fora do NICHO Novembro, a programação da “Tela de Pano-Terra” se prolonga para um dia de Cabo Verde num Off lá na Casa Lebre, Bragança Paulista, em plena Serrinha. Nesse local faremos reprises de alguns dos melhores filmes mostrados em São Paulo, se acrescentando dois marcos essenciais: o primeiro, uma Retrospectiva de César Schofield Cardoso (1973), artista pluridisciplinar essencial cujo trabalho se radica numa gramática visual contemporânea, e que em sua obra resume toda a curadoria, fazendo a ponte entre os sonhos do Cabo Verde da independência e a realidade sincrética do país atual, pós-colonial, hiper-conectado e insular; o segundo, a exposição Afro-Obliquidades, exibindo um espólio transmídia e video arte porventura oferecendo o melhor vislumbre das idiossincrasias cabo-verdianas.

No seu todo, essa programação constitui uma das maiores programações exclusivamente cabo-verdianas num festival ou mostra internacional. Estamos recontenti de partilhar tudo isso com vocês. Obrigado por nos acolherem, bem vindxs a esse espaço-tela morabeza –– nossa versão do ubuntu, o prazer de receber e abraçar o outro entre nós, como se fosse família.

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PROGRAMAÇÃO

Pólo Goethe Institut São Paulo

>>>Sessão 1 | Médias Metragens No Comment (Bloku 1 | Sinema Dôd i sen Kumentariu)

7 de novembro (segunda-feira)

19:00 | Duração: 1h45m | Q&A: 45m

Kmêdeus: Come Deus* | Dir. Nuno Miranda | Cabo Verde | Doc | Hib | Exp | 2020 | 52’

O plano do Senhor (Plánu Di Nhô Deus) | Dir. Carlos Yuri Ceuninck | Bélgica, Cabo Verde | Doc | 2021 | 53’

* Festival Internacional de Cinema de Roterdã

Abrimos essa curadoria com dois incríveis filmes documentais colocando na tela o sincretismo cultural cabo-verdiano. Um, partilhando um pouco da vivência do Barlavento, e o outro a do Sotavento, as duas regiões do país e entre as quais se dividem as dez ilhas de Cabo Verde.

>>>Tertúlia: Q&A e bate-papo com Heitor Augusto (Programador-chefe do NICHO 54) e Pedro José-Marcellino (curador da Tela de Pano-Terra, a programação do país convidado), apresentando-se os destaques e linhas curadorias das programações dessa semana.

Pólo CCSP – Centro Cultural São Paulo

>>>Sessão 2 | Curtas no Colo dos Ancestrais (Bloku 2 | Kurta Stribadu na Indjarga)

8 de novembro (terça-feira)

16h30 | Duração: 1h21m

O homem novo (Omi Nobu*) | Dir. Carlos Yuri Ceuninck | Cabo Verde, Bélgica, Alemanha, Sudão | Doc | 2023 | 15’

Dona Mónica | Dir. Carlos Yuri Ceuninck | Cabo Verde | Doc | 2020 | 7’

Querida Mila (Nha Mila**) | Dir. Denise Fernandes | Portugal, Suíça | Fic | 2020 | 18’30

Mistida*** | Dir. Falcão Nhaga | Portugal | Fic | 2022 | 30’

* Preview Exclusivo NICHO Novembro 2022

** Locarno Film Festival | Nomeação Melhor Curta, Prémio Sofia da Academia Portuguesa

*** Filme escola | Festival Internacional de Cannes | com Bia Gomes e Welket Bungué

A primeira sessão no CCSP junta na mesma tela três dos nomes mais promissores do novo cinema cabo-verdiano, com cinco curtas-metragens exibidas e premiadas um pouco por todo o mundo, todas elas centradas na exploração de personagens complexas, idiossincráticas.

>>>Tertúlia da Curadoria: De papo com a caboverdianidade (Fladu Fla Kriolu na Sampa)

8 de novembro (terça-feira)

17h45 | Duração: 1h

Conhecendo Nha Bia Di Cutelo i Nhô Djonga di baléa através do cinema

Pedro José-Marcellino | Produtor, realizador e politólogo | Curador do Ekran d’Pánu Téra

Sueli Duarte | Artista multimédia, atelierista e gestora do @kukuka.atelier

Diltino Moniz Ferreira | Pesquisador e Doutorando em Linguística (Kriolu), Universidade Federal do Ceará (UFC)

Bate-papo explorando os temas centrais da curadoria, nomeadamente questões identitárias, de resgate da memória, da nuance e soberania culturais, o ressurgir de uma indústria cinematográfica (trans)nacional em Cabo Verde, e o destaque do cinema (sobretudo documental) de personagem nesse processo.

>>>Sessão 3 | Baobá/Origens/Codeswitch/Afrofuturos (Bloku 3 | Pé di Polón/Txon/Codeswitch/Afrofuturu)

9 de novembro (quarta-feira)

16h30 | Duração: 1h57m

Identidade I | Dir. Ângela Brito | Brasil | Doc | Exp | 2020 | 7’19”

Identidade II | Dir. Ângela Brito | Brasil | Doc | Exp | 2020 | 6’23”

Kmêdeus: Come Deus* | Dir. Nuno Miranda | Cabo Verde | Doc | Hib | Exp | 2020 | 52’

#4 Mangifera** | Dir. Flávia Gusmão | Portugal, Cabo Verde, Canadá | Doc | Fic | Exp | 2022 | 52’

* Festival Internacional de Cinema de Roterdã

** Estreia Internacional em festival

Um bloco de filmes híbridos e experimentais representando o que de mais interessante se está fazendo nas novas linguagens cinemáticas cabo-verdianas. Várias vertentes identitárias, das raízes mais profundas a uma performatividade eclética do afrohistoricismo e afrofuturismo.

>>>Bloku 4 | Storia di Tenp d’Kanekinha I

Sessão 4 | Resistência, Memória, Identidade I

10 de novembro (quinta-feira)

16h30 | Duração: 1h42m

Djassi, Amílcar, Abel (Djassi) | Dir. Chissana Magalhães | Cabo Verde | 2018 | Doc | 5′

Canhão De Boca (Kanhon D’boca) | Dir. Ângelo Lopes | Cabo Verde | Doc | 2016 | 52’

Espelho de prata (Spédju Prata) | Diogo Bento, Edson Silva D. | Portugal, Cabo Verde | 2012 | Doc | 201 | 49′

A memória e o seu resgate são temas centrais das sociedades pós-coloniais. Em Cabo Verde, temas como a escravatura, a cor de pele, a independência, e o processo de democratização continuam influindo no presente, como pontos de partida para o pensamento contemporâneo.

Pólo Goethe-Institut São Paulo

>>> Sessão 5 | Sapato Fino e o Olhar Alheio (Bloku 5 | Sapatinha Rubera Riba, Sapatinha Rubera Baxo)

10 de novembro (quinta-feira)

19h00 | Duração: 1h49m | Q&A: 45m

Altas Cidades de Ossadas | João Salaviza | Ideia Original e Argumento de Karlão | Portugal | Fic | Hib | 2017 | 19´

Djon África | Filipa Reis e João Miller Guerra | Produzido por Samira Pereira | Portugal, Cabo Verde | Fic | 2011 | 90’

Sessão de ficção dedicada ao cinema sobre Cabo Verde, exibindo duas vertentes de vidas negras na tela. Co-produzido ou co-autorado por cabo-verdianos, em colaboração com cineastas portugueses cuja presença foi aceite na lógica de “nada sobre nós sem nós”.

>>>Tertúlia: Q&A e bate-papo sobre as fronteiras e as nuances da soberania cultural e do acesso à indústria. Com Fernanda Lomba (Diretora Executiva do NICHO 54), Pedro José-Marcellino (curador da “Tela de Pano-Terra”), e um representante do Goethe-Institut, onde o tema tem sido explorado no contexto de uma curadoria de cinema alemão hifenizado.

>>> Sessão 6 | Resistência, Memória, Identidade II (Bloku 6 | Storia di Tenp d’Kanekinha II)

11 de novembro (sexta-feira)

19h00 | Duração: 1h37m | Q&A 20m

Os 47s – Depoimentos dos que ficaram | Artemisa Ferreira | Cabo Verde | DOC | 2022 | 97´

Com essa longa recém-estreada em Cabo Verde e no Festival de Brasília, fechamos a semana de exploração identitária da cultura cabo-verdiana com um filme-memória oral, que resgata dois aspetos fundamentais e dolorosos de seus momentos formativos: a fome e a seca.

>>>Tertúlia: Q&A e bate-papo com entre Fernanda Lomba (Diretora Executiva do NICHO 54) e Pedro José-Marcellino (curador da “Tela de Pano-Terra”) sobre a indústria, seus limites e suas potencialidades, a primazia do cinema documental no Sul Global, e as colaborações Sul-Sul.

Tela D’pánu Terra Off Na Casa Lebre, Bragança Paulista (Serrinha)

>>> Exposição Transmídia | Afro-Obliquidades e Identidades Transversais (Expozison Transmédia | Afro-Oblikuidadi i óts Identidadi Transversal)

4 a 18 de novembro

Semana da Consciência Negra

Galeria da Casa Lebre: Show transmídia e vídeo arte de 10 cineastas, artistas multimídia e intelectuais públicos de Cabo verde e do país-irmão, Guiné Bissau: César Schofield Cardoso (The Intense Now), Ângela Brito (Identidade), Pedro José-Marcellino, Yuri Ceuninck, Lólo Arziki, Djam Neguim, Sueli Duarte, Isaac Narciso Webber, Welket Bungué, e Miguel de Barros.

>>> Sessão 7 | Retrospectiva de César Schofield Cardoso (Bloku 7 | Retrospektiva di César Schofield Cardoso)

12 de novembro (sábado)

14:00 | Duração 81m

Estórias Sem Sair do Sítio (Storia Na Lugar*) | Dir. César Schofield Cardoso | Cabo Verde | DOC | HIB | EXP | 2022 | 81’

* Corte Exclusivo em Estreia Internacional na Casa Lebre

Filme-arte, filme-poema, filme-ensaio de um dos artistas mais conhecidos de Cabo Verde, em sintonia temática com a curadoria. Cineasta multidisciplinar, ele agrega aqui seus trabalhos da última década numa retrospectiva de memória, futurismo, desconstrução e reconceitualização.

>>>Tertúlia da Curadoria: Memória, Identidade, Descolonização

12 de novembro (sábado)

15h45 | Duração: 45m

Os artistas cabo-verdianos Pedro José-Marcellino (curador do “Ekran d’Pánu Téra”) e Sueli Duarte (artista multimédia e atelierista) conversam com seus convidados e com o público sobre caboverdianidade, soberania cultural, língua, descolonização e o resgate da memória.

>>> Sessão 8 | Partidas e Regressos (Bloku 8 | Si ka sta badu ka sta biradu)

12 de novembro (sábado)

16:45 | Duração 1h35m

Querida Mila (Nha Mila) | Dir. Denise Fernandes | Portugal, Suíça | Fic | 2020 | 18‘30“

Fruto do Vosso Ventre (Fruit Of Thy Womb) | Dir. Fábio Silva | Portugal | Doc | 2021 | 24’

Tonel: Nação Ilhéu (Bidon: Nação Ilhéu) | Dir. Celeste Fortes e Edson Silva D. | Cabo Verde | Doc | 2021 | 52”

Nesse bloco de curtas se aborda um tema central no cinema e em toda a sociedade cabo-verdiana: a emigração como fator formativo da identidade nacional, gerador de hibridismos e criador de corredores de influência cultural mútua com a diáspora e com seus países.

>>>Tertúlia da Curadoria: Vapor di Migrason

12 de novembro (sábado)

18h30 | Duração: 45m

Os artistas cabo-verdianos Pedro José-Marcellino (curador do “Ekran d’Pánu Téra”) e Sueli Duarte (artista multimédia e atelierista) conversam com seus convidados sobre a história e a contemporaneidade do fenómeno da migração como tema social, cinemático e linguístico.

>>> Sessão 9 | De Papo com Deus (Bloku 9 | Na Tertúlia ku Deus)

12 de novembro (sábado)

19:15 | Duração 2h10m

Na Hora de Partir (Hora Di Bai) | | Dir. Samira Vera-Cruz | Cabo Verde | Doc | 2017 | 24’

#4 Mangifera | Flávia Gusmão | Dir. Portugal, Cabo Verde, Canadá | Doc | Fic | Hib | Exp | 2022 | 52’

[intervalo 10m]

Kmêdeus: Come Deus | Dir. Nuno Miranda | Cabo Verde | DOC | HIB | EXP | 2020 | 53’

[intervalo 10m]

O plano do Senhor (Plánu Di Nhô Deus) | Dir. Carlos Yuri Ceuninck | Bélgica, Cabo Verde | Doc | 2021 | 53’

>>>Encerramento

12 de novembro (sábado)

22:30 | Múzka di bai ó Múzka pa badja | Musica de Fechamento