Seguimos vivos. E agora?

Por Heitor Augusto, programador-chefe do NICHO 54

[Atenção: este texto foi escrito antes do término da corrida eleitoral à presidência]

Em novembro de 2019, ocasião do lançamento do NICHO 54 e da realização do NICHO Novembro, nossa decisão por tematizar o evento de “Amor Negro Herói” representava um contraponto ao clima de desesperança após a eleição de Bolsonaro. Agora, em 2022, fomos novamente rodeados pela ansiedade do impacto de uma eventual reeleição e do senso de urgência de ter novamente Lula sob o aposto “presidente”.

Contudo, 2022 foi também ano de lançamento de Marte Um, acontecimento que traz alegria ao coração de um curador que há tanto lida com filmes pretos. Uma família preta, periférica que sonha a despeito de tudo e que exercita a empatia, apesar das imensas diferenças entre si. Um longa-metragem de um diretor preto criado numa periferia brasileira e cujas obras foram profundamente impactadas por políticas públicas para a população negra.

Cito o acontecimento de Marte Um pois ele me traz orgulho de ser preto e trabalhar com cinema, assim como me traz orgulho ter construído, ano a ano, um festival negro de cinema que em sua quarta edição não apenas volta ao formato presencial, mas expande numa intensidade inédita para a nossa organização. Neste ano, o NICHO Novembro projeta 31 filmes de nove países num icônico espaço público de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo. O CCSP também abriga uma exposição fotográfica com capítulos da trajetória da nossa instituição e uma sessão ao ar livre em seu jardim suspenso.

Na edição de 2022 também retomamos a parceria com o Instituto Moreira Salles, uma das mais sólidas instituições culturais do país, com a qual realizamos a formação “Memórias Pretas”. O IMS Paulista também recebe o NICHO 54 para a realização das formações e masterclasses em mercado, com foco nas trajetórias de mulheres negras e em interlocução com a diáspora na França.

Sem mais delongas, vamos falar dos filmes?

Sessão de abertura e sessão de encerramento

Grace tomada única (One Take Grace, IDFA) abre o festival propondo um tensionamento das hierarquias entre quem filma e quem é filmado. O longa sul-africano é resultado do encontro da trabalhadora doméstica e atriz Mothiba Grace Bapela e a artista Lindiwe Matshikiza. Grace tomada única apresenta formas de ver e documentar que instigam pela audácia.

Se o mundo do trabalho e o questionamento sobre o que é ser artista pauta o filme de abertura, já a sessão de encerramento, realizada ao ar livre no jardim suspenso do CCSP, reforça o sentimento de comunidade. O curta-metragem Men Nan Men (BlackStar Festival) e o longa Ainda estamos aqui (Nos Tenemos, Urbanworld Film Festival) retratam personagens fortes e resilientes que impactam seu entorno no Haiti e em Porto Rico. Dirigidos, respectivamente, por Wilson Edmond e Eli Jacobs-Fantauzzi, as duas obras inspiram o público a seguir confiante no poder da atuação coletiva em lugares negligenciados pelo Estado ou destroçados por interesses internacionais.

A intimidade no cotidiano

Uma das propostas da nossa curadoria neste ano é diminuir a atenção para as grandes narrativas e intensificar o interesse por filmes com personagens navegando um cotidiano íntimo, sensível, marcado tanto pela particularidade quanto pelo potencial universal – outro impacto do acontecimento Marte Um. Essa característica é especialmente nítida nos programas intitulados “Nossos corações”, “Nossas mães”, “Nossos conflitos” e “Artesania”.

Em “Nossos corações”, quatro curtas nos convidam a mergulhar na profundidade dos sentimentos. Por amor (For Love, SXSW), de Joy Gharoro-Akpojotor, destaca o afeto ao invés da dor na intimidade de um casal de mulheres africanas e imigrantes no Reino Unido. Esconderijo dos lagos gêmeos (Twin Lakes Haven, Festival de Locarno), de Philbert Aimé Mbabazi Sharangabo, nos leva a uma estonteante região no norte de Ruanda através da misteriosa relação entre três jovens. Time de dois (Recifest), de André Santos, situa o amor e a tomada de decisões transformadoras na adolescência de dois garotos. Meio-dia (Half Day, American Black Film Festival) toca de maneira sensível na questão da masculinidade de dois meninos negros que compartilham o mesmo pai.

Em “Nossas mães”, três documentários apresentam miradas empáticas de filhas para com suas genitoras. Rito de beleza (The Ritual to Beauty, BlackStar), de Maria Marrone e Shenny de Los Angeles, navega entre registro documental e a performance ao endereçar traumas transmitidos por gerações de mulheres da mesma família. Águas silenciosas (Still Waters, BlackStar), de Aurora Brachman, mergulha em dolorido território ao apresentar mulheres que submergiram da violência. Já A história de minha mãe (La vie de ma mère), de Maïram Guissé, traz a negociação entre duas mulheres de distintas gerações e que experienciam questões como migração e identidade de maneira díspar.

Em “Nossos conflitos”, duas ficções do Canadá e da Tanzânia nos introduzem a personagens cujas jornadas representam embates com um entorno. Perigo noturno (Scaring Women at Night, TIFF), de Karimah Zakia Issa, extrai sua potência do conflito entre dois pontos de vista de vulnerabilidade numa noite qualquer. Em Cabo de guerra (Vuta N’Kuvute, African Film Festival New York) a jornada de amadurecimento de uma mulher e de um homem se entrelaça com o contexto de descolonização na África.

Em “Artesania”, três curtas chamam atenção pela feitura qualificada, atenciosa e sensível da narrativa cinematográfica. Manhã de domingo (Urso de Prata na Berlinale), de Bruno Ribeiro, traz para primeiro plano uma pianista que precisa revisitar os rastros do passado em sua vida presente. A perda de Joy (Losing Joy, BFI Flare), de Juliana Kasumu, é um convite à imersão no luto de Faith, bem como em suas estratégias de superação. Por fim, Não vim no mundo para ser pedra (CineOP), de Fabio Rodrigues Filho, dá continuidade à pesquisa do realizador em reposicionar a contribuição de atores negros ao cinema brasileiro, desta vez ressaltando a obra e o pensamento de Grande Otelo.

Foco Nova Onda Cabo Verde

Neste ano realizamos a primeira retrospectiva dentro do NICHO Novembro, um marco para a história do festival. O programa “Tela de Pano-Terra: Nova Onda Cabo Verde (Ekran D’pánu Téra: Nobu Vaga Kauberdi)” é fruto do trabalho e da interlocução com o documentarista, e produtor Pedro José-Marcellino, profissional na encruzilhada diaspórica e em contínua interlocução com a terra de seu pai e avós, Cabo Verde.

Mirar a produção contemporânea cabo-verdiana e de sua diáspora é uma oportunidade para enriquecer entendimentos sobre identidades, pertencimento e negociações. Nas palavras de Marcellino, “nos nossos dez pontinhos de terra marrom em meio do Atlântico, o isolamento e o sentimento de abandono e de separação do mundo foi sempre assim, arreigado. É o paradoxo de ser um país na encruzilhada marítima de quatro continentes, mas ainda assim distante de todos eles”.

Alargando as definições de filme preto

Um dos valores da visão curatorial do nosso instituto é convidar o público a embaralhar definições, inclusive a própria classificação “cinema negro” ou até mesmo “cinemas negros”. Essa postura, presente em outras edições do festival e também das mostras realizadas pelo NICHO 54, segue reforçada na edição deste ano do festival. As sessões intituladas “Futuridade”, “Fazer ancestral em comunidade” e “Experimentações” destacam esse aspecto.

Geada de Netuno (Neptune Frost, IFFR), de Anisia Uzeyman e Saul Williams, desafia qualquer definição de gênero, num sentido amplo da palavra. É um musical pró-descolonização que retoma o cinema de Med Hondo, levando questões como extrativismo, tempo, soberania e identidade para territórios instigantes.

Sessão bruta (Mostra de Tiradentes), de As Talavistas e ela.ltda, parte do gesto criativo de recusa ao ciscentrismo na vida e no cinema. A partir daí, assistimos a um devir de filme e entramos numa espiral em que cada unidade narrativa carrega profundas discussões e intenso potencial sensível.

Solmatalua (É Tudo Verdade), de Rodrigo Ribeiro-Andrade, e Caixa preta (Festival Ecrã), de Saskia e Bernardo Oliveira, tem na investigação sonora e no olhar atento à imagem seus grandes trunfos: o primeiro parece ter pousado de alguma temporalidade que não cabe no relógio; o segundo, por sua vez, mergulha na matéria das coisas que constituem o Brasil com uma frontalidade que poucas obras ousaram fazer.

Preservando memórias

Destaca-se também na programação do festival deste ano um olhar que valoriza questões de preservação, memória, acervo e passado. Esse apreço se manifesta pela “Memórias pretas: oficina de preservação audiovisual”, correalizada pelo IMS; pela exposição “NICHO 54: construindo memória negra”, em cartaz no CCSP durante o festival; e pela seleção de Xaraasi Xanne: vozes cruzadas (Les Voix Croisées, Cinéma du réel).

O documentário de Raphaël Grisey e Bouba Touré combina muitos gestos em um único filme: arquivar uma memória da militância de africanos imigrantes na França e suas lutas por condições dignas de vida; reapresentar um ousado projeto de investimento agrícola no Mali; e também um tributo a Touré e suas décadas de registro da vida negra e africana.

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Voltamos ao presencial depois de duas edições quase exclusivamente vividas no ambiente virtual. É uma honra ter a programação de filmes abrigada no CCSP e ser recebido pelo IMS Paulista nas masterclasses de mercado e oficinas de formação. Sentimos muitas saudades do contato pessoal e da franqueza de conversar sobre os filmes sem depender da mediação das redes sociais.

Independentemente do que tenha saído do resultado do dia 30 de outubro, convidamos vocês a seguirem se alimentando de vida, algo que o NICHO Novembro certamente propiciará.