A predileção pelo retrato

Por Heitor Augusto, programador-chefe do Instituto NICHO 54

O Festival NICHO Novembro chega à sua quinta edição em 2023 exibindo 28 filmes no Centro Cultural São Paulo (CCSP) e tendo como interesse representações complexas das vidas negras nas telas e o incentivo à realização cinematográfica negra. Estamos orgulhosos da cuidadosa pesquisa curatorial que trará para o público do CCSP histórias negras ambientadas desde um vilarejo no sudeste do Quênia até a ilha caribenha de Guadalupe, passando por diversas cidades dos interiores de Brasil e Estados Unidos e também nos encontros do Atlântico Negro.

Uma característica preponderante na seleção de filmes deste ano é a predileção pelo retrato. De personalidades famosas a invisibilizadas, de interações da juventude à masculinidade, da ocupação de território às dinâmicas intergeracionais, as 15 sessões do Festival NICHO Novembro são atravessadas pelo desejo de retratar. As abordagens estéticas nessa construção, contudo, variam significativamente entre si, trazendo uma bem-vinda variedade de olhares, geografias e sentimentos.

“Retrato” e “Memória” são sentimentos que guiam a Sessão de Abertura do festival deste ano no dia 09 de novembro, às 19h30. Drylongso, um pequeno e pouco conhecido tesouro do cinema americano dos anos 1990, completa 25 anos desde seu lançamento e chega ao nosso festival com cópia restaurada. Dirigido pela premiada artista visual Cauleen Smith, o longa nos apresenta a uma jovem fotógrafa que toma para si a tarefa de registrar imagens de jovens negros para combater seu desaparecimento.

“A terra é nossa” é o sentimento que guia a sessão de curtas-metragens em 10 de novembro às 16h30. Alexandrina, um relâmpago, de Keila Sankofa, é uma fabulação documental sobre uma pioneira da investigação do território amazônico em meados do século 19. É o fim do mundo como conhecemos, dirigido por Anne-Sophie Nanki, é um filme de época ambientado em Guadalupe, ilha caribenha colonizada por franceses, e que investiga tensões e parcerias entre indígenas dizimados e africanos escravizados. Já Cicatriz tatuada, dirigido por Eugênio Lima, Gabriela Martins e Matheus Brant, dá continuidade a esse tema, mas desloca o foco para a transmissão de conhecimento.

“Bora dançar” é o sentimento que guia a sessão noturna – 19h30 – do dia 10 de novembro. Ambos os filmes partem da ludicidade do corpo negro para lidar com assuntos políticos. Adoleta negra: a história das brincadeiras de bate-mão, de Michèle Stephenson e Joe Brewster, reivindica uma mirada politizada e racializada sobre essas brincadeiras. Enquanto isso, o longa Black Rio! Black Power!, de Emílio Domingos, estreia em São Paulo apresentando um olhar potente sobre uma geração que revolucionou a militância negra na década de 1970. O filme recupera os protagonistas dos bailes black nos anos 1970 e como esses espaços permitiram troca de conhecimento, formação política, prazer e expressividade para pessoas negras durante a ditadura militar.

“Nós por nós” é o sentimento que guia a sessão da tarde do sábado, 11 de novembro, que traz atenção especial para criações e histórias LGBTQ+. Por que não ensinaram bixas pretas a amar?, de Juan Rodrigues, é um ensaio visual que parte de uma situação de violência para pensar a força do amor entre homens negros. Já o longa-metragem Kokomo City, de D. Smith, retrata as subjetividades, reflexões e trajetórias de quatro travestis pretas estadunidenses que trabalham na indústria do sexo. Baseado na cumplicidade entre a identidade de gênero entre diretora e personagens, o filme entrega momentos potentes para o espectador.

“Monumentos” guia a sessão das 19h30 do sábado, 11 de novembro. Diálogos com Ruth de Souza é, ao mesmo tempo, tributo, reflexão e fabulação acerca da pioneira atriz. A direção de Juliana Vicente devolve o protagonismo de Ruth para o audiovisual brasileiro propondo enxergar a personagem como elo entre passado, presente e futuro de mulheres negras.

“Imaginários” orienta a exibição da tarde de domingo, 12 de novembro. Black Barbie, um documentário, cuja realização antecedeu por oito anos o grande blockbuster de 2023, olha criticamente para o legado da boneca mais famosa do mundo. Com direção de Lagueria Davis, o filme retrata a trajetória de uma trabalhadora negra da Mattel nos EUA e a disputa para “desembranquecer” Barbie.

“Desapagando” guia a sessão da noite de 12 de novembro. Euclydes ilumina uma trajetória praticamente desconhecida: a do criador da rota aérea Rio de Janeiro-Nova York, o piloto Euclydes Pinto Martins, um homem negro. O documentário de Rafael Machado reposiciona a importância histórica do personagem, além de reintroduzi-lo para a própria família.

Após o descanso de segunda-feira, as sessões são retomadas com uma especial retrospectiva da Firelight Media, organização que trabalha promoção e fomento de pessoas negras e não brancas nos Estados Unidos. Para a edição deste ano, a Firelight selecionou seis filmes que apresentam realidades pouco conhecidas nos EUA. As exibições acontecem sempre às 16h30.

“Cuidado e perda” são os sentimentos que guiam a sessão de 14 de novembro. O filho de Ruby, de Gisela Rosario Ramos, navega as tensões culturais de Porto Rico a partir do marcador familiar e identitário. Já o longa-metragem Por toda a noite, de Loira Limbal, volta ao Festival NICHO Novembro após três anos para nos reapresentar à bela história de Nunu, uma mulher negra que coordena uma creche que funciona 24 horas por dia.

“Lugares” guia a sessão noturna de 14 de novembro, composta exclusivamente por curtas. Geruzinho, dirigido por Juliana Teixeira, Luli Morante e Rafael Amorim, apresenta a vitalidade do bloco sergipano Descidão dos Quilombolas. Nada haver, de Juliano Gomes, utiliza a experimentação formal para observar jovens dando um rolezinho no centro de Belo Horizonte. Só que dessa vez nada retorna das cinzas, dirigido por Asmaa Jama e Gouled Ahmed, investiga temas como Diáspora e pertencimento entre Etiópia, Reino Unido e Somália. Por fim, Remendo, de Roger Ghil, talvez o curta brasileiro mais premiado deste ano, constrói um rizoma que toca em questões como identidade e amor.

A retrospectiva Firelight Media continua com a sessão das 16h30 de 15 de novembro, tendo “Território e Memória” como sentimentos-guia. A morte é o nosso negócio, de Jaqueline Olive, mostra como os funerais de pessoas negras em Nova Orleans, famosos pela festividade, foram impactados pela pandemia. Já o longa Um lugar nosso, de Stanley Nelson, apresenta ao público brasileiro uma colônia de férias ocupada majoritariamente por afro-americanos ricos há mais de cem anos.

“Entre gerações” guia a sessão da tarde de 15 de novembro. Casa de Luiza, de Rodrigo Antonio, relaciona luto e ressignificação da casa da família na Ilha do Marajó, no Pará. Rumo, longa-metragem de estreia de Bruno Victor e Marcus Azevedo, recupera o trabalho político realizado há duas décadas por estudantes negros na UnB rumo à aprovação e regulamentação das Ações Afirmativas no Ensino Superior. Entre o documentário e a ficção, o filme conecta os esforços daquela geração com a atuação de jovens negros nos dias de hoje.

“Moldando futuros” orienta a última sessão da retrospectiva Firelight Media, em 16 de novembro, às 16h30. Graça estranha: a arte de Amyra León, de Malika Zouhali Worrall, é um retrato do potente processo de criação da promissora cantora. Já o longa-metragem Deixe a luz brilhar, de Kevin Shaw, documenta a luta pela sobrevivência de uma escola pública negra de alto rendimento sob risco de ser substituída para privilegiar moradores ricos.

À noite, “Masculinidades” guia a sessão de 16 de novembro. Mergulho, ficção de Anderson de Jesus e Marton Olympio, joga luz no processo de reaproximação entre filho e pai após um evento traumático. Shimoni, da queniana Angela Wamai, constrói um delicado e doloroso retrato de um homem assolado pelos eventos de um passado perturbador.

O último dia de sessões traz ao público três filmes premiados.

Na sessão da tarde do dia 17 de novembro, exibimos o longa Mugunzá, da dupla Ary Rosa e Glenda Nicácio. Intercalando Musical e Faroeste, o filme é também um exercício e também uma homenagem a gêneros cinematográficos marcantes no imaginário.

Já a sessão de encerramento, às 19h30, retrata juventudes. Ramal, curta-metragem de Higor Gomes, encontra beleza e poesia num espaço masculino na periferia de Sabará, Belo Horizonte. Já o longa-metragem Levante tematiza o direito ao aborto na história de uma garota aspirante à jogadora profissional. Com direção de Lillah Halla, a ficção constrói uma emocionante cumplicidade entre corpos dissidentes e investe na agência das personagens.

Trazendo para o público do Centro Cultural São Paulo obras exibidas em festivais como Cannes, Roterdã, SXSW, FestCurtasBH, Mostra de Tiradentes, Griot e Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, o Festival NICHO Novembro 2023 se consolida como espaço de promoção do potencial da curadoria para a transformação de imaginários e construção de pertencimentos.